Estudo detalha benefícios do transplante de células-tronco no tratamento da Esclerose Sistêmica

A Esclerose sistêmica, doença reumática autoimune, afeta 1 em cada 20 mil pessoas, em sua maioria mulheres na faixa dos 30 a 50 anos. Trata-se de uma doença rara e agressiva, que compromete o paciente funcionalmente a partir da substituição de tecido normal por tecido cicatricial.

Um dos tratamentos existentes é o transplante de células-tronco hematopoiéticas, isto é, células capazes de se diferenciar em células especializadas do sangue e do sistema imune. Os mecanismos envolvidos nesse tipo de transplante vêm sendo estudados por cientistas do Centro de Terapia Celular (CTC) da Universidade de São Paulo (USP) e, em um estudo recente, estabeleceram o efeito desse procedimento sobre um grupo de linfócitos responsável pela produção de anticorpos (as células B do sistema imune), de modo a avaliar a melhora dos pacientes e sinalizar outras possíveis opções de tratamento futuras.

Segundo a professora Kelen Malmegrim de Farias, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto - FCFRP/USP, os "pacientes com esclerose sistêmica perdem o que chamamos de tolerância imunológica, desenvolvendo linfócitos B e T autorreativos, ou seja, que reconhecem e atacam tecidos do próprio organismo. O papel das células B na esclerose sistêmica ainda não é bem definido na literatura. Conseguimos descobrir um novo mecanismo de ação do transplante: as células B reguladoras são importantes para o controle da autoimunidade e remissão da doença logo após o tratamento”.

A médica reumatologista Maria Carolina de Oliveira, livre-docente da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto - FMRP/USP explica que o objetivo, nesse caso, "é tratar o sistema imunológico, pois é ele que agride o organismo do paciente" e, por essa razão, os resultados do estudo são bastante promissores. "O transplante ainda é muito genérico, já que impacta todo o sistema imune, e também muito agressivo. Mas resultados como este mostram que, no futuro, talvez consigamos ser mais pontuais e focar somente nas células que interessam – e isso vale também para pacientes não transplantados, tratados com imunossupressores. Conhecendo o mecanismo de ação de cada célula envolvida, talvez consigamos desenvolver terapias mais específicas”. A reumatologista explica, ainda, que, mesmo com o transplante, a doença pode trazer lesões irreversíveis, como a chamada mão de garra. "No entanto, o transplantado consegue voltar a realizar as atividades do dia a dia e pode ter uma expectativa maior de vida".

No CTC são transplantados casos graves, quando há comprometimento do pulmão ou de grande parte da pele. Desde 2004 a equipe já transplantou por volta de 120 pessoas, com resultados clínicos considerados muito bons. “Os pacientes têm melhora na pele e ganho funcional, conseguem voltar a trabalhar e a realizar atividades como dirigir, cozinhar ou cuidar da família. A parte respiratória, ao menos, estabiliza e há ganho de qualidade de vida. Já sabíamos sobre as evidências da melhora clínica, mas não conhecíamos os mecanismos envolvidos”, diz a médica.

O transplante é autólogo, ou seja, não é necessário doador. “Colhemos as células-tronco saudáveis do próprio paciente e as congelamos. Esse procedimento é todo feito no Hemocentro Regional de Ribeirão Preto, onde fica a sede do CTC. Então, ministramos ao paciente uma mistura de imunoterapia com quimioterapia, um mix de fármacos que destrói as células produzidas na medula óssea: as do sangue e as do sistema imune. Depois, descongelamos aquelas células-tronco e as colocamos de volta. E, assim, praticamente reiniciamos o sistema imunológico. As células-tronco vão gerar uma medula óssea nova, um sangue novo e um sistema imunológico novo, que deixa de agredir o organismo”, explica.

Mas nem todos os acometidos pela esclerose sistêmica são elegíveis para o transplante. “Para aquele que tem a doença em forma muito leve não compensa o risco, pois é possível tratá-lo de maneira relativamente satisfatória com imunossupressores, que são os medicamentos geralmente utilizados. E para aquele que já está em estado muito grave, com muitas lesões irreversíveis, também não, pois ele correrá o risco do procedimento sem nenhum benefício. A seleção é uma das coisas mais difíceis do processo. Os médicos tendem a encaminhar para o transplante o paciente que já está muito gravemente acometido. É preciso um trabalho de alertar o reumatologista para diagnosticar e enviar o paciente a tempo para o transplante, ainda encarado por muitos profissionais como a última solução possível. Além disso, como se trata de uma doença rara, poucos têm experiência em lidar com ela, e o diagnóstico se confunde com o de lúpus e de artrite reumatoide”, relata Oliveira, lembrando que a idade-limite para o transplante no CTC é 60 anos.

A médica esclarece, por fim, que, após o transplante, o sistema imune demora algo em torno de 2,5 a 3 anos para se reconstituir completamente. “Nós retiramos os imunossupressores do paciente, tomamos muito cuidado com infecções e, naturalmente, temos de refazer todas as vacinas da pessoa, que é acompanhada até cinco anos após o procedimento.”

Atualmente, o transplante de células-tronco hematopoiéticas para tratamento da esclerose sistêmica não faz parte da lista de procedimentos oferecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Também não integra o rol de procedimentos cobertos pelos planos de saúde privados. Oliveira afirma que essa inclusão é uma longa batalha dos profissionais da área: “Europa e Estados Unidos já têm o transplante como tratamento-padrão, coberto pelos seguros ou planos de saúde. Aqui no Brasil temos batalhado para incorporá-lo ao SUS. Não é um tratamento caro. Na verdade, talvez seja até barato se compararmos ao custo que a rede pública terá para tratar o portador da doença pelo resto da vida com internações, oxigênio etc.”


O Estudo

A professora Kelen Malmegrim de Farias e a médica reumatologista Maria Carolina de Oliveira são coautoras de artigo recente publicado na revista Rheumatology*, juntamente com o biomédico João Rodrigues Lima-Júnior, doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Biociências e Biotecnologia da FCFRP/USP. 

Para fazer as análises necessárias para o estudo das células B, a equipe coletou o sangue periférico de 22 pacientes antes do transplante e depois de 30, 60, 120, 180 e 360 dias de sua realização. “Depois de ‘zerarmos’ o sistema imunológico, as células-tronco são infundidas e o sistema hematopoiético e imunológico vão se reinicializar. As células B, formadas na medula óssea, se recuperam mais rapidamente do que as células T, objeto de nosso primeiro artigo. Em um ou dois meses após o transplante já há a reconstituição do compartimento de células B. Assim, neste novo trabalho publicado na Rheumatology, nos concentramos no primeiro ano após o transplante. Avaliamos os pacientes um mês, dois meses, quatro meses e assim por diante, até um ano após o procedimento, focando nas células B”, explica Malmegrim.

As células foram analisadas por citometria de fluxo (método usado para examinar simultaneamente diversos parâmetros de células ou partículas em suspensão) e ensaios funcionais. Foram analisadas as características biológicas das células B, como a produção de citocinas, as vias de sinalização e a capacidade supressora das células B reguladoras. De acordo com Malmegrim, os resultados mostraram que, nos portadores da doença, há uma desregulação das células B. Antes do transplante há mais células B de memória, que produzem os autoanticorpos que atacam os tecidos do paciente; e menos população de células B jovens (chamadas pelos cientistas de naive), que ainda não aprenderam a reconhecer os antígenos (substâncias que desencadeiam a produção de anticorpos). 

Ainda segundo a professora, uma "população importante de células B são as reguladoras: aquelas responsáveis por colocar um freio nas respostas imunes patogênicas do organismo, que podem levar a danos teciduais. Nos pacientes com esclerose sistêmica, essas células estão diminuídas em número e função. Depois do transplante, o número de células B reguladoras aumenta, bem como sua capacidade supressora. Além disso, após o transplante, o paciente começa a apresentar maior frequência de células B naive e as células B de memória diminuem”. A cientista menciona os estudos de correlação feitos posteriormente mostrando que, a esse impacto do transplante sobre as células B, correspondeu uma melhora clínica dos pacientes. E observa: “Só é possível manipular o sistema imunológico do paciente com tal grau de êxito porque, nas doenças autoimunes, não está envolvido apenas o fator genético. Se fosse assim, o transplante autólogo não funcionaria. Há sempre um gatilho: geralmente um fator ambiental que, aliado à predisposição genética, faz com que a doença autoimune seja desencadeada na pessoa. Ainda sabemos pouco sobre os gatilhos dessa e de outras doenças autoimunes.”




* O artigo Autologous hematopoietic stem cell transplantation restores the suppressive capacity of regulatory B cells in systemic sclerosis patients pode ser acessado em: https://doi.org/10.1093/rheumatology/keab257.

 


Fonte

NINNI, Karina. Estudo detalha benefícios do transplante de células-tronco no tratamento da Esclerose Sistêmica. Agência FAPESP, 05 ago. 2021. Disponível em: http://agencia.fapesp.br/estudo-detalha-beneficios-do-transplante-de-celulas-tronco-no-tratamento-da-esclerose-sistemica/36508. Acesso: 08/08/2021